terça-feira, 25 de agosto de 2009

02

Era tarde e chovia torrencialmente em São Paulo. Diversos focos de alagamento anunciavam congestionamentos e vias intransitáveis na manhã seguinte. Seria uma terça-feira difícil.

Àquela hora o centro da cidade estava praticamente deserto. Um frio incomum para o mês de novembro seguira o temporal, obrigando as pessoas a se refugiarem no calor de suas casas. Mesmo os mendigos haviam desaparecido, lotando abrigos e os albergues da prefeitura.

Quem se atrevesse pelas ruas do centro velho se depararia com uma cena bastante improvável: Em pé sobre o parapeito de um viaduto, alguém ignorava a chuva e o vento cortante sobre sua pele nua. Uma figura feminina, de alguma espécie quase humana. Seu corpo envolto por um véu na forma de espirais de fumaça escura e densa que nunca se dissipava, apesar da tempestade. Concentrada, não se deixava distrair pelas formas que os espíritos desenhavam na chuva para confundi-la. Sentia o ar, procurava por alguém... Mas foi algo inesperado que encontrou, rastejando através do breu da noite.

Com os portões dos mundos abertos, era inevitável que os outros aparecessem. Ela só não esperava por um verme escondido nas trevas. Patético! Seria um invasor de sonhos qualquer? Talvez nem sequer fosse capaz de encontrar o humano sozinho. Ela não se preocuparia com aquilo agora. Havia algo diferente nas correntes de ar, um traço sutil do cheiro adocicado do sangue daquele nascido em Tenébria roçava suas narinas. O sangue de seu senhor, a quem ela tanto buscava. Tentava avidamente rastreá-lo entre os odores de toda uma cidade, quando foi surpreendida por um olho medonho que se abriu no vazio da escuridão, terrivelmente fixo na direção dela. Um ladrão de almas! Aquilo era perigoso demais à noite, ela precisava sair dali.

Sem perder o rastro do sangue, saltou do alto do viaduto na direção mais iluminada que encontrou. Afastar-se das sombras era vital, talvez sua única chance naquele momento.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

01

Em alguma parte, durante o breve momento que precede o alvorecer, a luz das estrelas cintilava com intensidade em poças d’água barrenta. Relâmpagos clareavam assustadoramente o chão lamacento coberto pelas últimas sombras da madrugada, embora o céu acima permanecesse impecavelmente limpo. Os raios não vinham do alto, mas de dentro da própria escuridão. Aquelas sombras antes do nascer do sol, as mais escuras de todas, refletiam um outro mundo, longínquo demais para qualquer mapa e ao mesmo tempo muito perto para não ser encontrado.

Nesse outro mundo, protegido pela solidez de seus aposentos incrustados na rocha, um velho anão estava imperturbável frente à tempestade que caía ferozmente do lado de fora. Os rugidos abafados de trovões distantes e os demais sons da chuva sequer eram capazes de se sobrepor ao ranger monótono de sua cadeira de balanço.

O pequeno cômodo era iluminado por um único toco de vela. Além da cadeira, sobre a qual o homem tragava preguiçosamente um cachimbo, havia ali um catre, uma cômoda rústica e um banco servindo de suporte a uma botija com água. A isso resumiam-se seus pertences. Havia outro objeto preso à parede, mas aquele não lhe pertencia.

Tratava-se de uma adaga feita de sombra, envolta por um intrigante véu etéreo.

O velho anão olhava para ela enquanto exalava pequenas quantidades de fumaça com o cachimbo na mão. Fazia aquilo sempre que a melancolia do exílio recaía sobre ele. Ainda alimentava esperanças de que Hermes voltaria para buscar a arma. O campeão encontraria um modo, ainda que levasse muitos anos...

O sono fez o anão perder a noção do tempo. Já haviam se passado muitos anos, e Hermes, o campeão do rei, jamais voltara. Assim, absorto em pensamentos, ele adormeceu na cadeira antes mesmo que a luz da vela se extinguisse. Mais um instante acordado e teria visto a lâmina de sombra da adaga crepitar descompassadamente com o fim da chama da vela e a silhueta de uma mulher caminhar pelo quarto.