terça-feira, 17 de novembro de 2009

13

Rafael não sabia exatamente o que fazer. Mandar que uma faca deixasse de ser uma faca soava tão lógico quanto pedir ao anão à sua frente que parasse de se encolher e confessasse ser um gigante complexado.

— Vamos, ordene! — Oldor demonstrava impaciência. — Se ela o trouxe até aqui, é provável que você tenha propriedade para fazer com que se revele. Apenas ordene, e faça isso como se fosse o dono dela.

O rapaz girou a adaga na mão, perguntando-se o quanto ela poderia ser diferente caso possuísse mesmo outra forma. Talvez fosse maior, ou a lâmina mais consistente. Difícil saber ao certo, assim como qualquer coisa naquele lugar. Rafael alinhou o tronco até então encurvado pela falta de apoio no banco e inclinou-se alguns graus para trás, protegendo-se do que pudesse vir a acontecer. Enfim, disse com a voz hesitante, soando involuntariamente diferente do normal, como quem reza em voz alta:

— Adaga Ceres, eu ordeno que você mostre sua verdadeira forma...

Um silêncio cheio de expectativa preencheu o instante seguinte. Rafael observava atentamente o objeto em sua mão, mas logo ouviu Oldor praguejar, frustrado. Nada acontecera e ele se sentiu estúpido e um pouco constrangido. O anão apoiou os cotovelos sobre a mesa e abaixou a cabeça até prendê-la entre os braços, pensativo, mexendo nos cabelos desgrenhados sem nenhuma delicadeza.

— Não sei mais o que te dizer, garoto! — Oldor encarava Rafael com o rosto repuxado entre as mãos. — Apesar de ter forjado essa adaga, nem eu posso saber tudo a respeito dela. Não tenho dúvidas de que foi ela a te trazer aqui, mas não faço idéia do porquê. Seu avô... ele deveria estar aqui, não você. E há o orbe de Lúmen também — continuou gravemente, como se venerasse a esfera reluzente no centro da mesa. — Este é de longe o artefato mais importante deste lado do continente. Quando ele estava aqui, nossa terra era uma; sem ele, tornou-se o que é hoje. Quem sabe o que ela pode vir a ser com ele aqui outra vez?

Havia um resto de chá na caneca do anão e ele o bebeu, recompondo-se depois.

— Posso voltar para casa? — Rafael fez a pergunta que estivera em sua mente desde o início.

— Sinto muito, mas isso depende de Ceres — Oldor meneava a cabeça. — A adaga possui vontade própria, e já que não obedece às suas ordens, não há muito que fazer a respeito. — Rafael sentiu o desespero tomar conta dele. — Saiba que é uma região bastante afastada esta em que nos encontramos. Acho melhor você ir a Lúmen, procurar por respostas. Mas já é tarde, vamos encontrar um canto onde você possa descansar. Você parte amanhã cedo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

12

— Seu chá vai esfriar — Oldor pôs fim ao silêncio que tomava conta da sacristia, mais escura agora que o fogo junto à parede se apagara de vez. Rafael estava absorto, o turbilhão em sua mente a ponto de enlouquecê-lo.

— Me fala que lugar é esse, de uma vez por todas! — sua voz carregava certo tom de súplica.

— Já lhe disse: Tenébria. Estamos em algum lugar do seu mundo que você não consegue ver. Da mesma forma, seu mundo está aqui em toda parte e ninguém pode chegar até ele. Mas nem sempre foi assim, ou ao menos as histórias dizem que não. As correntezas abriam passagens de um lado a outro durante os grandes temporais e postos de parada como este acolhiam quem atravessasse a fronteira.

À menção disso, Rafael se lembrou da tempestade que se abatera sobre São Paulo na noite anterior. Tinha que admitir que as palavras de Oldor mostravam cada vez mais coerência. O anão mudou o foco da conversa repentinamente:

— Há algo que precisamos descobrir. Quero que você segure a adaga — Rafael mal se lembrava da presença do objeto sobre a mesa. Ergueu-o à altura dos olhos e reparou em seu cabo dourado, reluzindo com a luz avermelhada do orbe, e na lâmina enegrecida e translúcida que de modo algum se assemelhava a qualquer metal que ele já houvesse visto. Uma espiral irregular de fumaça se movia lentamente ao redor da lâmina e se dispersou quando Rafael agitou a adaga para os lados, refazendo-se assim que ele parou. Quando ameaçou tocar a lâmina, foi advertido por Oldor:

— Saiba que isso pode facilmente arrancar seu dedo... — Rafael pensava se lembrar da dor causada por aquela arma rasgando-lhe o peito e achou prudente não arriscar. — Posso garantir, pois eu mesmo a forjei e entreguei nas mãos de Hermes — o anão prosseguia, orgulhoso e nostálgico, ao tempo em que Rafael já não se surpreendia ao ouvir o outro falar do avô — Seu nome é Ceres e há quem trocaria a alma por ela. Não, a razão não vem ao caso... — completou, impedindo Rafael de perguntar. — Agora ordene que Ceres assuma sua verdadeira forma, neto de Hermes, e vejamos se ela tem algo a nos dizer.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

11

Rafael estava atordoado. Parecia-lhe cada vez mais plausível a hipótese de estar tendo um sonho lúcido. Analisando os fatos desde que acordara no chão da capela, percebia o quanto os acontecimentos recentes eram absurdos. Inclusive o fato de ele ter se permitido fazer parte daquilo. Não pôde evitar uma espiadela no teto baixo da sacristia para se certificar de que um elefante verde-musgo não estava voando em círculos sobre sua cabeça... O mais inquietante era que, se houvesse começado a sonhar quando despertara naquele lugar, o que afinal teria se passado na oficina do avô? Talvez estivesse mesmo morto e aquele fosse o purgatório de que o padre falara certa vez... Logo o bater do cachimbo emborcado de Oldor sobre a mesa o trouxe de volta de seus pensamentos.

— Seu avô nunca mencionou Tenébria, não é mesmo? — o anão suspirou e retirou as folhas de erva-de-bugre das canecas. Bebeu um gole do chá, apreciando tanto quanto alguém que não conhece açúcar poderia. As linhas em seu rosto e um brilho no olhar denunciavam a nostalgia que se apoderava dele. — Hermes é uma lenda, uma das maiores. O grande campeão do rei.

— Pára com isso! — Rafael pretendeu um tom de deboche que no fim transpareceu certa irritação. — Você não conhece meu avô. Ele é só um carpinteiro metido a Gepeto.

— É mesmo? E por acaso o carpinteiro Hermes não teria uma cicatriz no lado esquerdo do rosto?

Rafael se mexeu no banco, irrequieto e sem ter como retrucar. Lembrava-se de por diversas vezes ter perguntado ao avô como ele conseguira a cicatriz entre o olho e a narina esquerda. Não se lembrava no entanto de em alguma delas ter recebido qualquer resposta. O rapaz travava uma luta para permanecer calmo agora que ficava mais difícil negar que aquele homem de fato sabia quem era seu avô. Viu Oldor sorrir, satisfeito.

— Hermes, seu avô, foi o capitão da guarda durante o reinado do falecido Augusto IV de Lúmen. O predileto, tanto do rei quanto da princesa — o anão mantinha os olhos no cachimbo que girava entre os dedos enquanto prosseguia, calculando cada palavra como se o assunto fosse um tabu: — Aparentemente ele nunca falou a respeito do passado, o que é bastante compreensível. Deve ter pensado em proteger a família que construiu no outro mundo. Mas, ouça-me, ele não pode ter se esquecido de que atravessou a fronteira dos mundos cumprindo com seu dever! — Oldor assumia um aspecto que beirava o assustador. — No fim da guerra, quando a derrota da coroa para os rebeldes vermelhos era iminente, Hermes foi escolhido para se exilar na Terra e salvar o tesouro mais precioso do povo de Lúmen. E se você tem dúvidas, filho, por que não tenta me dizer como o orbe estava em suas mãos quando o encontrei na capela?

Rafael concluiu que, se houvesse alguma chance daquilo ser um sonho, estava cada vez mais difícil prever quando ele poderia ter começado.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

10

Continente? — Rafael ostentava um quê de deboche e indignação ao repetir o que o outro havia dito com indiscutível naturalidade.

Oldor demonstrou indiferença à provocação do rapaz. Levantou-se de seu banco para tirar a água borbulhante do fogo, o que fez após apanhar duas canecas de louça aparentemente muito bem conservadas em um armário e tê-las posto sobre a mesa. Em seguida, encheu-as com a água e adicionou uma folha pequena de erva-de-bugre a cada uma.

— Este lugar onde estamos agora já foi um posto de parada um dia. O último antes da fronteira — disse enquanto voltava a se sentar com uma careta de dor, seus músculos e ossos envelhecidos cobrando o preço por cada movimento mais brusco. — Em algum lugar ao norte daqui havia um caminho para o país de onde você veio e um posto, semelhante a esse, já do seu lado do mundo. Mas isso foi há muito tempo... Se é que foi mesmo.

— Do que você está falando?

— Qual é seu nome de família? — Oldor pareceu não ter ouvido a pergunta, compenetrado de súbito em algum pensamento.

— de Almeida Carvalho — Rafael respondeu, desconcertado.

— Carvalho... — o anão se interessou. Soltou uma longa baforada de fumaça e tirou o cachimbo da boca.

— É, um sobrenome comum.

— Diga-me — Oldor se encurvou na direção de Rafael, seu rosto se iluminando cadavericamente como o de um contador de histórias de terror ao redor de uma fogueira com a proximidade da luz da esfera —, como seu pai se chama? E seu avô? Bisavô?

— Meu pai se chama André, o pai dele, Hermes, o pai da minha mãe--

— Hermes! — o anão ergueu um pouco a voz, alarmando Rafael com a mudança repentina. Então se pôs a rir até que uma tosse seca o fez parar. Rafael se perguntava o que o nome de seu avô poderia significar para um alienado feito aquele.

— Agora começa a fazer sentido! — Oldor fitava Rafael com um misto de admiração e pena. O tempo não poupa ninguém, e coube ao neto de Hermes o fardo de devolver o orbe a Tenébria.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

09

Rafael remexia-se, sentado desconfortavelmente em um banco tripé e bambo. Encontrava-se em outro cômodo da capela, uma espécie de sacristia sem qualquer iluminação externa e úmida a ponto de fazê-lo pensar estar outra vez em um porão, esse possivelmente bem próximo de uma mina d’água. Mantinha a muito custo os últimos resquícios de calma em meio às circunstâncias.

A figura que avistara antes na penumbra do salão principal fazia-lhe companhia: um velho anão que socava ervas repicadas no fornilho de um cachimbo desproporcionalmente grande frente à sua estatura reduzida. Entre os dois, uma mesa tão pouco confiável quanto o banco onde Rafael se equilibrava tinha em seu centro a adaga misteriosa e o pacote que ele encontrara na porta da casa do avô. No chão, em frente a uma parede, gravetos em chamas esquentavam água para um chá.

O embrulho em forma de caixa estava aberto. Seu conteúdo iluminava os rostos dos dois à sua volta e projetava sombras distorcidas atrás da parca mobília da sacristia. Rafael reconhecia a forma esférica do objeto no interior do pacote, assim como a tonalidade vermelha-fogo da luz que ele emanava; aquele era o sol noturno do quadro no corredor que dava acesso à oficina do avô. Agora, o fato de ele ter estado o tempo todo lá, dentro da caixa, era só uma entre as questões esperando resposta.

— Quem é você? — Rafael perguntou ao anão, que acendia o cachimbo usando uma pedra de fósforo com a qual alguém sem a devida prática haveria certamente se queimado. Não haviam se apresentado adequadamente entre os bancos da capela. Rafael chegou a dizer seu nome, mas se ateve a fazer perguntas desconexas e até certo ponto desequilibradas a respeito de vida, morte, céu e inferno.

— Oldor. De Lúmen — o anão pendurou o cachimbo no canto da boca ao responder e já enchia de fumaça o ar sobre a esfera, alimentando a ilusão de que havia uma fogueira sobre a mesa.

— Onde eu estou, afinal? O que aconteceu comigo?

— Por que você veio parar aqui é algo além da minha compreensão — Oldor disse entre dentes com sua voz rouca. — Mas você é provavelmente a única criatura, humana ou não, em todo continente de Tenébria sem saber onde está.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

08

A consciência voltava aos poucos, incentivada pela dor no braço sobre o qual seu corpo pesava desajeitado. Rafael sentiu frio e abriu os olhos para descobrir que estava caído de bruços no chão poeirento de um salão pouco iluminado, cercado por móveis velhos e escuros, bem diferentes dos que havia na oficina do avô. O incômodo de um objeto esmagado entre seu corpo e o solo obrigou-o a se mexer um pouco. Sentiu os músculos doerem ao tentar se espreguiçar – não era impossível que tivesse ficado deitado ali, imóvel, por horas. Em seguida descobriu o que estivera involuntariamente escondendo.

Uma adaga.

Lembranças invadiram sua mente em uma onda. Embrulho, cheiro de verniz, boneco, olho hipnotizante, mulher. Morte. Achava-se bem vivo, no entanto. Levantou-se devagar, com cuidado para não forçar o braço dolorido, e se deu conta de que estava em uma espécie de capela antiga.

O lugar poderia muito bem estar abandonado. Havia pó por toda parte e Rafael percebeu que faltavam bancos nas duas únicas fileiras que a largura da construção permitia que houvesse ali. Em frente à parede oposta, não fosse por uma pequena cruz de madeira deitada descuidadamente sobre a rocha, o altar estaria totalmente vazio.

A pouca luz no ambiente advinha de janelas estreitas e altas, algumas com vidros quebrados. Ele se aproximou de uma delas para espiar o lado de fora e não reconheceu o cenário cinza e deserto, tomado por carcaças de árvores mortas, que se estendia por uma ladeira irregular. Que lugar é esse? O que está acontecendo, afinal? — Rafael tentava entender como chegara ali quando pensou ver um emaranhado de mariposas se afastar e desaparecer atrás de galhos secos e retorcidos, encobertos a todo momento por nuvens de areia e folhas. O vento invadia a capela através das falhas nos vidros, soprando ruidosamente, sussurrando palavras desconexas e ininteligíveis entre uma rajada e outra. A situação era perturbadora.

O rapaz examinou os bancos mais calmamente e acabou encontrando, apoiado no encosto de um deles, os restos de uma moldura quebrada que trouxeram o quadro do avô de volta a sua mente. Se todas aquelas coisas inexplicáveis estavam interligadas, ele não fazia a menor idéia de como isso poderia ser.

Escurecia rapidamente no interior da capela. Ali, parado entre os bancos, Rafael teve a sensação desagradável de estar sendo observado. Apertou os olhos e girou em torno de si mesmo, examinando tudo à sua volta, até perceber uma luz fraca vindo do canto do primeiro banco, onde as sombras já dominavam. Sobressaltou-se ao reconhecer alguém sentado naquele lugar afastado, encurvado na direção do altar, como que rezando. Aproximou-se, sem saber se o outro sabia da sua presença, e estacou ao som de uma voz rouca:

– Suponho que haja um bom motivo para você estar aqui.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

07

Algo além de simples curiosidade forçou Rafael a se aproximar do brinquedo. Uma atração maior, como um gato desfilando sobre um muro que divide dois quintais com cachorros, impulsionou seus passos lentos para perto da estante.

Em meio a miniaturas de caminhões pintados em tons brilhantes e enfeites para quartos de criança, o objeto daquela fixação era um boneco grande e esbranquiçado, de formas aparentemente complexas demais para as limitações da carpintaria do avô de Rafael. Exposto em uma prateleira meio metro acima da altura do rapaz, apoiava o corpo esguio e encurvado sobre os próprios joelhos e a cabeça sobre o ombro esquerdo, formando um ângulo que seguramente teria sido desconfortável a uma pessoa. Os braços pendiam desarticuladamente para os lados.

Apesar da distância que os separava, Rafael pôde observá-lo o suficiente para ter certeza de que o boneco não era feito de madeira. Além disso, também lhe faltavam os olhos e o nariz. De certo estava inacabado. Reparou também em um risco vertical que se alongava por quase toda a garganta do brinquedo. Havia uma elevação esférica nesse ponto, circundada por uma cavidade superficial arroxeada, que dava ao boneco um aspecto mais para bibelô de adolescente rebelde do que de um presente que alguém daria a um sobrinho.

Agora que Rafael estava próximo a um número maior de peças de madeira, o cheiro de verniz incomodava muito e fazia seu nariz coçar. Embora achasse melhor ir embora dali, seus pés se recusavam a sair do lugar e seus olhos permaneciam vidrados no boneco branco cujo material ele ainda não conseguia identificar.

Uma tontura súbita escureceu por completo o contorno da visão do rapaz, obrigando-o a se abaixar por um instante, com receio de um tombo. Não foi rápido até que fosse capaz de enxergar razoavelmente bem outra vez. Logo, Rafael sentiu um torpor retardar-lhe os movimentos e o último pensamento coerente que teve foi sobre o quanto o verniz era capaz de afetá-lo. Tudo à sua volta ameaçava girar quando ele fixava o olhar sobre algum ponto específico, ao mesmo tempo em que mover os olhos era nauseante, o que o deixava sem opções.

Ao observar de novo o boneco de material misterioso, percebeu, sem lucidez suficiente para se surpreender, que o risco na garganta do brinquedo era na verdade o encontro das pálpebras de um olho grande e asqueroso que agora estava aberto e fixo em sua direção. Rafael sentia que estava sendo arrastado aos solavancos para perto do boneco, embora tivesse consciência de que seu corpo não saía do lugar. Fazia uma vaga noção da existência de fumaça em algum lugar à sua volta...

Rafael sentia que ia morrer.

Algo se mexeu em uma prateleira mais alta. O olho cessou a atração mística e girou bruscamente para cima, agitado. O rapaz o imitou e se deparou com o vulto de uma mulher caindo sobre ele. Antes que houvesse tempo para qualquer coisa, os dois corpos se chocaram e rolaram amontoados pelo chão sujo. Rafael sentiu a dor de ter o peito rasgado. Agonizando, tateou até alcançar uma adaga cravada em seu tórax, enquanto ouvia o boneco sem boca guinchar de ódio. A última coisa que viu foram mariposas cercando seu corpo até tudo escurecer completamente.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

06

A oficina era surpreendentemente maior do que Rafael imaginara. Parado na porta ele via uma série de talhadeiras, furadeiras, lixas e pincéis espalhados desordenadamente pelo chão de dois corredores compridos, ladeados por estantes altas e imponentes que raspavam o teto e lembravam colunas improvisadas em um salão em obras. O rapaz se perguntou como aquele lugar podia ser tão grande – Deve ser o subsolo da casa toda – pensou. A altura das paredes parecia-lhe particularmente inexplicável, considerando os poucos degraus que havia descido desde o térreo até aquele nível.

A iluminação era parca e não provinha de nenhuma lâmpada no teto. Com um passo para dentro do primeiro corredor, Rafael enxergou um lampião aceso sobre uma escrivaninha coberta de papéis, sua luz projetando sombras demasiado grandes para o tamanho dos objetos nas prateleiras, em sua maioria meros brinquedos de madeira.

Vô? – Rafael chamou hesitante enquanto observava uma seqüência de bonecos com expressões débeis pintadas nos rostos de pau. Atravessou todo o corredor sem que nenhuma voz respondesse a seu chamado e percebeu que quanto mais se aprofundava entre as prateleiras, mais nauseante se tornava o cheiro de verniz exalado pelas peças armazenadas ali. O rapaz passou pela escrivaninha e observou desinteressado os rascunhos do avô antes de entrar no segundo corredor e se dar conta de que não havia ninguém ali.

Parado com o embrulho que encontrara na porta de entrada preso entre o antebraço e a cintura, a primeira explicação que lhe ocorreu para o som do móvel sendo arrastado que ouvira do lado de fora foi a existência de ratos na oficina. Nada mais óbvio tratando-se de um porão abarrotado de ferramentas e madeira. Entretanto, não havia qualquer sinal de móvel fora do lugar ou mesmo de algum que pudesse ter sido arrastado. A escrivaninha era a única capaz de fazer um barulho como aquele, já que as estantes pareciam presas e pesadas demais para serem movidas, mas, obviamente, mesmo ela precisaria de um homem para tirá-la do lugar. De qualquer forma, não havia marcas na mistura de pó e serragem no chão que denunciassem alguma movimentação, logo alguma ferramenta era o máximo que algum roedor afoito poderia ter mexido.

Rafael decidiu ir embora da oficina. Não tinha mais o que fazer ali e sua cabeça já começava a doer por causa do ar viciado. Fez o caminho de volta através do segundo corredor e teve a impressão de que os brinquedos naquelas prateleiras eram maiores que os anteriores. Na verdade estavam mesmo cada vez maiores. Alguns eram fascinantes, quase vivos. Especialmente um, que nem parecia ser feito de madeira.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

05

Deixando o cachorro lamentar sozinho na cozinha, o rapaz desceu mal-humorado um lance de escadas, levando consigo o estranho pacote. Se encontrasse o avô, o único destinatário possível da encomenda, já que ele próprio não passava de um hóspede, ele poria fim ao mistério.

Grande mistério... Pensou que aquela era toda a diversão que conseguia ter em um dia de férias longe de casa e isso piorou seu humor um pouco mais.

Havia um corredor estreito e mal iluminado após o último degrau. A imagem de abandono daquele canto da casa fez o rapaz pensar que a comida ruim não era o único motivo para o avô precisar urgentemente contratar uma empregada. Depois de alguns passos, que ergueram pó do chão de tábuas velhas e de odor intenso, Rafael se deparou com um quadro na parede, sob a única lâmpada do lugar, que atraiu sua atenção e obrigou-o a parar para observar.

Com um contraste marcante, a pintura retratava uma esfera em chamas brilhando em meio a uma paisagem noturna, como uma paródia do sol, sobre um castelo com quatro torres. Rafael ergueu a mão para tocar no quadro, fascinado com a esfera que parecia prestes a se desprender e saltar da tela. Pensou sentir um calor emanando do objeto envolto em brasas e um medo absurdo de se queimar o fez recuar.

O som de um móvel sendo arrastado do outro lado da parede ajudou a trazer Rafael de volta à consciência. O quadro de repente se tornara a mais comum das pinturas, sua arte chamando tanta atenção quanto a moldura desgastada que a cercava. O móvel fora arrastado mais uma vez e Rafael sentiu aumentarem as chances de encontrar o avô. Deixou o quadro para trás e abriu a porta da oficina sem bater.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

04

Nuvens carregadas surgiram com rapidez e os primeiros pingos de chuva caíram enquanto Rafael estava ainda no caminho. Esforçou-se, mas correr não evitou que se molhasse antes de chegar à varanda da casa do avô.

Quando alcançou a proteção da cobertura de telhas acinzentadas de amianto, o rapaz arfava pesadamente com o cansaço e precisou apoiar a mão na coluna de carpintaria que sustentava o teto ondulado para tomar fôlego. Concluiu que aquele era o preço a pagar por passar as tardes na companhia dos amigos fumantes, ao invés dos que andavam de bicicleta. Apressou-se em tirar o casaco úmido, com receio de pegar um resfriado e pendurou-o desajeitadamente em um varal retrátil junto a uma parede lateral. Depois conferiu o estado dos pertences nos bolsos da calça. Por sorte a carteira e o celular continuavam secos.

Enquanto isso, além da proteção da varanda, a chuva engrossava cada vez mais.

Ao pôr as mãos na maçaneta da porta de entrada, Rafael topou com um pacote embrulhado em papel pardo na soleira, sobre um simpático tapete de boas-vindas. Tinha certeza de que o objeto não estava ali um minuto antes. Abaixou-se para pegá-lo e examinou-o por todos os lados, girando-o por diversas vezes, quase como faria com um cubo mágico. Não havia remetente e sequer um destinatário. Buscou na chuva a imagem de algum entregador correndo enquanto tentava inutilmente proteger-se da chuva com uma prancheta que pudesse dar-lhe alguma explicação, mas não encontrou ninguém.

Bastante intrigado, Rafael entrou em casa com o pacote nas mãos e chamou pelo avô. Ficou na expectativa de uma resposta com os ouvidos atentos durante um segundo, mas não ouviu qualquer som. Imaginou se ele ainda estaria fora. O velho havia saído logo pela manhã, sem dizer aonde ia, e ausentar-se por muito tempo não era um costume dele pelo que Rafael percebera naqueles poucos dias em que moraram juntos.

O cachorro o rodeava, choramingando, querendo sensibilizar o rapaz a respeito da sua tigela de comida vazia. Rafael ainda não aprendera exatamente onde as coisas eram guardadas e não fazia idéia de onde a ração do animal podia estar. Procurou superficialmente nos armários da cozinha, mas o melhor que conseguiu foi uma lata aparentemente esquecida de farinha láctea para forrar o próprio estômago. Isso caso encontrasse leite. As súplicas do cachorro tornavam-se irritantes a cada segundo e não davam sinais de que pudessem cessar. Sem muita alternativa, Rafael decidiu procurar pelo avô em sua oficina, no porão. Nunca fora até lá, mas havia a possibilidade do avô estar trabalhando trancado, como fazia com freqüência, onde não pudesse ouvi-lo chamar.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

03

Rafael acendeu um cigarro. Escondido no parque, espremendo-se em um balanço pequeno demais para seu corpo adolescente, sentia-se a salvo do olhar inquisitivo do avô. Mais cedo, antes que os dois voltassem a discutir por causa do vício, inventara um passeio com o cachorro para poder fumar em paz. Quando ele vai parar de agir como se fosse meu pai? — pensava ao observar o cão pular e latir na tentativa frustrada de apanhar algum inseto voador.

Era fim de tarde e naquela época do ano o frio vinha com o cair da noite em São Paulo. A chuva do dia anterior dera uma trégua e Rafael procurava por sinais no céu que o prevenissem de ser surpreendido caso ela tornasse a cair. Pensou que talvez devesse se apressar.

Conforme o cigarro diminuía, problemas vinham à sua mente. Não queria que os pais o tivessem mandado passar as férias todas na casa do avô, tampouco ter sido reprovado na escola, mas algumas coisas simplesmente acontecem e não se pode fazer nada a respeito. De que adiantava ficar longe de casa? Quem sabe os pais precisassem de um tempo sem ele.

Encolhendo-se um pouco com o frio que aumentava, o rapaz decidiu acabar logo de fumar e ir embora. Dava longas tragadas no cigarro, e a fumaça que espirava espantou uma mariposa que surgira de repente. Outras vieram em seguida, todas cinzentas, voando desacertadas à sua frente. Depois, mais outras. Não se lembrava de alguma vez ter visto tantas assim no mesmo lugar. Devia ser para uma delas que o cachorro latira antes. Por que ficara quieto agora que havia tantas? Procurou-o com os olhos, mas não o encontrou. Não importava. Rafael estava hipnotizado pelo modo como as mariposas voavam. Por um momento pensou ver alguma ordem no caos daquele bater de asas e não conseguia mais tirar os olhos dos insetos. Porém, ao som de um trovão, viu as mariposas se dissiparem todas de uma vez.

Levou um instante até que Rafael se livrasse do transe a que fora acometido. Encontrou o cachorro choramingando próximo a ele, apagou o cigarro e tomou o rumo da casa do avô antes que recomeçasse a chover.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

02

Era tarde e chovia torrencialmente em São Paulo. Diversos focos de alagamento anunciavam congestionamentos e vias intransitáveis na manhã seguinte. Seria uma terça-feira difícil.

Àquela hora o centro da cidade estava praticamente deserto. Um frio incomum para o mês de novembro seguira o temporal, obrigando as pessoas a se refugiarem no calor de suas casas. Mesmo os mendigos haviam desaparecido, lotando abrigos e os albergues da prefeitura.

Quem se atrevesse pelas ruas do centro velho se depararia com uma cena bastante improvável: Em pé sobre o parapeito de um viaduto, alguém ignorava a chuva e o vento cortante sobre sua pele nua. Uma figura feminina, de alguma espécie quase humana. Seu corpo envolto por um véu na forma de espirais de fumaça escura e densa que nunca se dissipava, apesar da tempestade. Concentrada, não se deixava distrair pelas formas que os espíritos desenhavam na chuva para confundi-la. Sentia o ar, procurava por alguém... Mas foi algo inesperado que encontrou, rastejando através do breu da noite.

Com os portões dos mundos abertos, era inevitável que os outros aparecessem. Ela só não esperava por um verme escondido nas trevas. Patético! Seria um invasor de sonhos qualquer? Talvez nem sequer fosse capaz de encontrar o humano sozinho. Ela não se preocuparia com aquilo agora. Havia algo diferente nas correntes de ar, um traço sutil do cheiro adocicado do sangue daquele nascido em Tenébria roçava suas narinas. O sangue de seu senhor, a quem ela tanto buscava. Tentava avidamente rastreá-lo entre os odores de toda uma cidade, quando foi surpreendida por um olho medonho que se abriu no vazio da escuridão, terrivelmente fixo na direção dela. Um ladrão de almas! Aquilo era perigoso demais à noite, ela precisava sair dali.

Sem perder o rastro do sangue, saltou do alto do viaduto na direção mais iluminada que encontrou. Afastar-se das sombras era vital, talvez sua única chance naquele momento.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

01

Em alguma parte, durante o breve momento que precede o alvorecer, a luz das estrelas cintilava com intensidade em poças d’água barrenta. Relâmpagos clareavam assustadoramente o chão lamacento coberto pelas últimas sombras da madrugada, embora o céu acima permanecesse impecavelmente limpo. Os raios não vinham do alto, mas de dentro da própria escuridão. Aquelas sombras antes do nascer do sol, as mais escuras de todas, refletiam um outro mundo, longínquo demais para qualquer mapa e ao mesmo tempo muito perto para não ser encontrado.

Nesse outro mundo, protegido pela solidez de seus aposentos incrustados na rocha, um velho anão estava imperturbável frente à tempestade que caía ferozmente do lado de fora. Os rugidos abafados de trovões distantes e os demais sons da chuva sequer eram capazes de se sobrepor ao ranger monótono de sua cadeira de balanço.

O pequeno cômodo era iluminado por um único toco de vela. Além da cadeira, sobre a qual o homem tragava preguiçosamente um cachimbo, havia ali um catre, uma cômoda rústica e um banco servindo de suporte a uma botija com água. A isso resumiam-se seus pertences. Havia outro objeto preso à parede, mas aquele não lhe pertencia.

Tratava-se de uma adaga feita de sombra, envolta por um intrigante véu etéreo.

O velho anão olhava para ela enquanto exalava pequenas quantidades de fumaça com o cachimbo na mão. Fazia aquilo sempre que a melancolia do exílio recaía sobre ele. Ainda alimentava esperanças de que Hermes voltaria para buscar a arma. O campeão encontraria um modo, ainda que levasse muitos anos...

O sono fez o anão perder a noção do tempo. Já haviam se passado muitos anos, e Hermes, o campeão do rei, jamais voltara. Assim, absorto em pensamentos, ele adormeceu na cadeira antes mesmo que a luz da vela se extinguisse. Mais um instante acordado e teria visto a lâmina de sombra da adaga crepitar descompassadamente com o fim da chama da vela e a silhueta de uma mulher caminhar pelo quarto.