terça-feira, 17 de novembro de 2009

13

Rafael não sabia exatamente o que fazer. Mandar que uma faca deixasse de ser uma faca soava tão lógico quanto pedir ao anão à sua frente que parasse de se encolher e confessasse ser um gigante complexado.

— Vamos, ordene! — Oldor demonstrava impaciência. — Se ela o trouxe até aqui, é provável que você tenha propriedade para fazer com que se revele. Apenas ordene, e faça isso como se fosse o dono dela.

O rapaz girou a adaga na mão, perguntando-se o quanto ela poderia ser diferente caso possuísse mesmo outra forma. Talvez fosse maior, ou a lâmina mais consistente. Difícil saber ao certo, assim como qualquer coisa naquele lugar. Rafael alinhou o tronco até então encurvado pela falta de apoio no banco e inclinou-se alguns graus para trás, protegendo-se do que pudesse vir a acontecer. Enfim, disse com a voz hesitante, soando involuntariamente diferente do normal, como quem reza em voz alta:

— Adaga Ceres, eu ordeno que você mostre sua verdadeira forma...

Um silêncio cheio de expectativa preencheu o instante seguinte. Rafael observava atentamente o objeto em sua mão, mas logo ouviu Oldor praguejar, frustrado. Nada acontecera e ele se sentiu estúpido e um pouco constrangido. O anão apoiou os cotovelos sobre a mesa e abaixou a cabeça até prendê-la entre os braços, pensativo, mexendo nos cabelos desgrenhados sem nenhuma delicadeza.

— Não sei mais o que te dizer, garoto! — Oldor encarava Rafael com o rosto repuxado entre as mãos. — Apesar de ter forjado essa adaga, nem eu posso saber tudo a respeito dela. Não tenho dúvidas de que foi ela a te trazer aqui, mas não faço idéia do porquê. Seu avô... ele deveria estar aqui, não você. E há o orbe de Lúmen também — continuou gravemente, como se venerasse a esfera reluzente no centro da mesa. — Este é de longe o artefato mais importante deste lado do continente. Quando ele estava aqui, nossa terra era uma; sem ele, tornou-se o que é hoje. Quem sabe o que ela pode vir a ser com ele aqui outra vez?

Havia um resto de chá na caneca do anão e ele o bebeu, recompondo-se depois.

— Posso voltar para casa? — Rafael fez a pergunta que estivera em sua mente desde o início.

— Sinto muito, mas isso depende de Ceres — Oldor meneava a cabeça. — A adaga possui vontade própria, e já que não obedece às suas ordens, não há muito que fazer a respeito. — Rafael sentiu o desespero tomar conta dele. — Saiba que é uma região bastante afastada esta em que nos encontramos. Acho melhor você ir a Lúmen, procurar por respostas. Mas já é tarde, vamos encontrar um canto onde você possa descansar. Você parte amanhã cedo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

12

— Seu chá vai esfriar — Oldor pôs fim ao silêncio que tomava conta da sacristia, mais escura agora que o fogo junto à parede se apagara de vez. Rafael estava absorto, o turbilhão em sua mente a ponto de enlouquecê-lo.

— Me fala que lugar é esse, de uma vez por todas! — sua voz carregava certo tom de súplica.

— Já lhe disse: Tenébria. Estamos em algum lugar do seu mundo que você não consegue ver. Da mesma forma, seu mundo está aqui em toda parte e ninguém pode chegar até ele. Mas nem sempre foi assim, ou ao menos as histórias dizem que não. As correntezas abriam passagens de um lado a outro durante os grandes temporais e postos de parada como este acolhiam quem atravessasse a fronteira.

À menção disso, Rafael se lembrou da tempestade que se abatera sobre São Paulo na noite anterior. Tinha que admitir que as palavras de Oldor mostravam cada vez mais coerência. O anão mudou o foco da conversa repentinamente:

— Há algo que precisamos descobrir. Quero que você segure a adaga — Rafael mal se lembrava da presença do objeto sobre a mesa. Ergueu-o à altura dos olhos e reparou em seu cabo dourado, reluzindo com a luz avermelhada do orbe, e na lâmina enegrecida e translúcida que de modo algum se assemelhava a qualquer metal que ele já houvesse visto. Uma espiral irregular de fumaça se movia lentamente ao redor da lâmina e se dispersou quando Rafael agitou a adaga para os lados, refazendo-se assim que ele parou. Quando ameaçou tocar a lâmina, foi advertido por Oldor:

— Saiba que isso pode facilmente arrancar seu dedo... — Rafael pensava se lembrar da dor causada por aquela arma rasgando-lhe o peito e achou prudente não arriscar. — Posso garantir, pois eu mesmo a forjei e entreguei nas mãos de Hermes — o anão prosseguia, orgulhoso e nostálgico, ao tempo em que Rafael já não se surpreendia ao ouvir o outro falar do avô — Seu nome é Ceres e há quem trocaria a alma por ela. Não, a razão não vem ao caso... — completou, impedindo Rafael de perguntar. — Agora ordene que Ceres assuma sua verdadeira forma, neto de Hermes, e vejamos se ela tem algo a nos dizer.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

11

Rafael estava atordoado. Parecia-lhe cada vez mais plausível a hipótese de estar tendo um sonho lúcido. Analisando os fatos desde que acordara no chão da capela, percebia o quanto os acontecimentos recentes eram absurdos. Inclusive o fato de ele ter se permitido fazer parte daquilo. Não pôde evitar uma espiadela no teto baixo da sacristia para se certificar de que um elefante verde-musgo não estava voando em círculos sobre sua cabeça... O mais inquietante era que, se houvesse começado a sonhar quando despertara naquele lugar, o que afinal teria se passado na oficina do avô? Talvez estivesse mesmo morto e aquele fosse o purgatório de que o padre falara certa vez... Logo o bater do cachimbo emborcado de Oldor sobre a mesa o trouxe de volta de seus pensamentos.

— Seu avô nunca mencionou Tenébria, não é mesmo? — o anão suspirou e retirou as folhas de erva-de-bugre das canecas. Bebeu um gole do chá, apreciando tanto quanto alguém que não conhece açúcar poderia. As linhas em seu rosto e um brilho no olhar denunciavam a nostalgia que se apoderava dele. — Hermes é uma lenda, uma das maiores. O grande campeão do rei.

— Pára com isso! — Rafael pretendeu um tom de deboche que no fim transpareceu certa irritação. — Você não conhece meu avô. Ele é só um carpinteiro metido a Gepeto.

— É mesmo? E por acaso o carpinteiro Hermes não teria uma cicatriz no lado esquerdo do rosto?

Rafael se mexeu no banco, irrequieto e sem ter como retrucar. Lembrava-se de por diversas vezes ter perguntado ao avô como ele conseguira a cicatriz entre o olho e a narina esquerda. Não se lembrava no entanto de em alguma delas ter recebido qualquer resposta. O rapaz travava uma luta para permanecer calmo agora que ficava mais difícil negar que aquele homem de fato sabia quem era seu avô. Viu Oldor sorrir, satisfeito.

— Hermes, seu avô, foi o capitão da guarda durante o reinado do falecido Augusto IV de Lúmen. O predileto, tanto do rei quanto da princesa — o anão mantinha os olhos no cachimbo que girava entre os dedos enquanto prosseguia, calculando cada palavra como se o assunto fosse um tabu: — Aparentemente ele nunca falou a respeito do passado, o que é bastante compreensível. Deve ter pensado em proteger a família que construiu no outro mundo. Mas, ouça-me, ele não pode ter se esquecido de que atravessou a fronteira dos mundos cumprindo com seu dever! — Oldor assumia um aspecto que beirava o assustador. — No fim da guerra, quando a derrota da coroa para os rebeldes vermelhos era iminente, Hermes foi escolhido para se exilar na Terra e salvar o tesouro mais precioso do povo de Lúmen. E se você tem dúvidas, filho, por que não tenta me dizer como o orbe estava em suas mãos quando o encontrei na capela?

Rafael concluiu que, se houvesse alguma chance daquilo ser um sonho, estava cada vez mais difícil prever quando ele poderia ter começado.