terça-feira, 27 de outubro de 2009

10

Continente? — Rafael ostentava um quê de deboche e indignação ao repetir o que o outro havia dito com indiscutível naturalidade.

Oldor demonstrou indiferença à provocação do rapaz. Levantou-se de seu banco para tirar a água borbulhante do fogo, o que fez após apanhar duas canecas de louça aparentemente muito bem conservadas em um armário e tê-las posto sobre a mesa. Em seguida, encheu-as com a água e adicionou uma folha pequena de erva-de-bugre a cada uma.

— Este lugar onde estamos agora já foi um posto de parada um dia. O último antes da fronteira — disse enquanto voltava a se sentar com uma careta de dor, seus músculos e ossos envelhecidos cobrando o preço por cada movimento mais brusco. — Em algum lugar ao norte daqui havia um caminho para o país de onde você veio e um posto, semelhante a esse, já do seu lado do mundo. Mas isso foi há muito tempo... Se é que foi mesmo.

— Do que você está falando?

— Qual é seu nome de família? — Oldor pareceu não ter ouvido a pergunta, compenetrado de súbito em algum pensamento.

— de Almeida Carvalho — Rafael respondeu, desconcertado.

— Carvalho... — o anão se interessou. Soltou uma longa baforada de fumaça e tirou o cachimbo da boca.

— É, um sobrenome comum.

— Diga-me — Oldor se encurvou na direção de Rafael, seu rosto se iluminando cadavericamente como o de um contador de histórias de terror ao redor de uma fogueira com a proximidade da luz da esfera —, como seu pai se chama? E seu avô? Bisavô?

— Meu pai se chama André, o pai dele, Hermes, o pai da minha mãe--

— Hermes! — o anão ergueu um pouco a voz, alarmando Rafael com a mudança repentina. Então se pôs a rir até que uma tosse seca o fez parar. Rafael se perguntava o que o nome de seu avô poderia significar para um alienado feito aquele.

— Agora começa a fazer sentido! — Oldor fitava Rafael com um misto de admiração e pena. O tempo não poupa ninguém, e coube ao neto de Hermes o fardo de devolver o orbe a Tenébria.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

09

Rafael remexia-se, sentado desconfortavelmente em um banco tripé e bambo. Encontrava-se em outro cômodo da capela, uma espécie de sacristia sem qualquer iluminação externa e úmida a ponto de fazê-lo pensar estar outra vez em um porão, esse possivelmente bem próximo de uma mina d’água. Mantinha a muito custo os últimos resquícios de calma em meio às circunstâncias.

A figura que avistara antes na penumbra do salão principal fazia-lhe companhia: um velho anão que socava ervas repicadas no fornilho de um cachimbo desproporcionalmente grande frente à sua estatura reduzida. Entre os dois, uma mesa tão pouco confiável quanto o banco onde Rafael se equilibrava tinha em seu centro a adaga misteriosa e o pacote que ele encontrara na porta da casa do avô. No chão, em frente a uma parede, gravetos em chamas esquentavam água para um chá.

O embrulho em forma de caixa estava aberto. Seu conteúdo iluminava os rostos dos dois à sua volta e projetava sombras distorcidas atrás da parca mobília da sacristia. Rafael reconhecia a forma esférica do objeto no interior do pacote, assim como a tonalidade vermelha-fogo da luz que ele emanava; aquele era o sol noturno do quadro no corredor que dava acesso à oficina do avô. Agora, o fato de ele ter estado o tempo todo lá, dentro da caixa, era só uma entre as questões esperando resposta.

— Quem é você? — Rafael perguntou ao anão, que acendia o cachimbo usando uma pedra de fósforo com a qual alguém sem a devida prática haveria certamente se queimado. Não haviam se apresentado adequadamente entre os bancos da capela. Rafael chegou a dizer seu nome, mas se ateve a fazer perguntas desconexas e até certo ponto desequilibradas a respeito de vida, morte, céu e inferno.

— Oldor. De Lúmen — o anão pendurou o cachimbo no canto da boca ao responder e já enchia de fumaça o ar sobre a esfera, alimentando a ilusão de que havia uma fogueira sobre a mesa.

— Onde eu estou, afinal? O que aconteceu comigo?

— Por que você veio parar aqui é algo além da minha compreensão — Oldor disse entre dentes com sua voz rouca. — Mas você é provavelmente a única criatura, humana ou não, em todo continente de Tenébria sem saber onde está.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

08

A consciência voltava aos poucos, incentivada pela dor no braço sobre o qual seu corpo pesava desajeitado. Rafael sentiu frio e abriu os olhos para descobrir que estava caído de bruços no chão poeirento de um salão pouco iluminado, cercado por móveis velhos e escuros, bem diferentes dos que havia na oficina do avô. O incômodo de um objeto esmagado entre seu corpo e o solo obrigou-o a se mexer um pouco. Sentiu os músculos doerem ao tentar se espreguiçar – não era impossível que tivesse ficado deitado ali, imóvel, por horas. Em seguida descobriu o que estivera involuntariamente escondendo.

Uma adaga.

Lembranças invadiram sua mente em uma onda. Embrulho, cheiro de verniz, boneco, olho hipnotizante, mulher. Morte. Achava-se bem vivo, no entanto. Levantou-se devagar, com cuidado para não forçar o braço dolorido, e se deu conta de que estava em uma espécie de capela antiga.

O lugar poderia muito bem estar abandonado. Havia pó por toda parte e Rafael percebeu que faltavam bancos nas duas únicas fileiras que a largura da construção permitia que houvesse ali. Em frente à parede oposta, não fosse por uma pequena cruz de madeira deitada descuidadamente sobre a rocha, o altar estaria totalmente vazio.

A pouca luz no ambiente advinha de janelas estreitas e altas, algumas com vidros quebrados. Ele se aproximou de uma delas para espiar o lado de fora e não reconheceu o cenário cinza e deserto, tomado por carcaças de árvores mortas, que se estendia por uma ladeira irregular. Que lugar é esse? O que está acontecendo, afinal? — Rafael tentava entender como chegara ali quando pensou ver um emaranhado de mariposas se afastar e desaparecer atrás de galhos secos e retorcidos, encobertos a todo momento por nuvens de areia e folhas. O vento invadia a capela através das falhas nos vidros, soprando ruidosamente, sussurrando palavras desconexas e ininteligíveis entre uma rajada e outra. A situação era perturbadora.

O rapaz examinou os bancos mais calmamente e acabou encontrando, apoiado no encosto de um deles, os restos de uma moldura quebrada que trouxeram o quadro do avô de volta a sua mente. Se todas aquelas coisas inexplicáveis estavam interligadas, ele não fazia a menor idéia de como isso poderia ser.

Escurecia rapidamente no interior da capela. Ali, parado entre os bancos, Rafael teve a sensação desagradável de estar sendo observado. Apertou os olhos e girou em torno de si mesmo, examinando tudo à sua volta, até perceber uma luz fraca vindo do canto do primeiro banco, onde as sombras já dominavam. Sobressaltou-se ao reconhecer alguém sentado naquele lugar afastado, encurvado na direção do altar, como que rezando. Aproximou-se, sem saber se o outro sabia da sua presença, e estacou ao som de uma voz rouca:

– Suponho que haja um bom motivo para você estar aqui.