terça-feira, 29 de setembro de 2009

07

Algo além de simples curiosidade forçou Rafael a se aproximar do brinquedo. Uma atração maior, como um gato desfilando sobre um muro que divide dois quintais com cachorros, impulsionou seus passos lentos para perto da estante.

Em meio a miniaturas de caminhões pintados em tons brilhantes e enfeites para quartos de criança, o objeto daquela fixação era um boneco grande e esbranquiçado, de formas aparentemente complexas demais para as limitações da carpintaria do avô de Rafael. Exposto em uma prateleira meio metro acima da altura do rapaz, apoiava o corpo esguio e encurvado sobre os próprios joelhos e a cabeça sobre o ombro esquerdo, formando um ângulo que seguramente teria sido desconfortável a uma pessoa. Os braços pendiam desarticuladamente para os lados.

Apesar da distância que os separava, Rafael pôde observá-lo o suficiente para ter certeza de que o boneco não era feito de madeira. Além disso, também lhe faltavam os olhos e o nariz. De certo estava inacabado. Reparou também em um risco vertical que se alongava por quase toda a garganta do brinquedo. Havia uma elevação esférica nesse ponto, circundada por uma cavidade superficial arroxeada, que dava ao boneco um aspecto mais para bibelô de adolescente rebelde do que de um presente que alguém daria a um sobrinho.

Agora que Rafael estava próximo a um número maior de peças de madeira, o cheiro de verniz incomodava muito e fazia seu nariz coçar. Embora achasse melhor ir embora dali, seus pés se recusavam a sair do lugar e seus olhos permaneciam vidrados no boneco branco cujo material ele ainda não conseguia identificar.

Uma tontura súbita escureceu por completo o contorno da visão do rapaz, obrigando-o a se abaixar por um instante, com receio de um tombo. Não foi rápido até que fosse capaz de enxergar razoavelmente bem outra vez. Logo, Rafael sentiu um torpor retardar-lhe os movimentos e o último pensamento coerente que teve foi sobre o quanto o verniz era capaz de afetá-lo. Tudo à sua volta ameaçava girar quando ele fixava o olhar sobre algum ponto específico, ao mesmo tempo em que mover os olhos era nauseante, o que o deixava sem opções.

Ao observar de novo o boneco de material misterioso, percebeu, sem lucidez suficiente para se surpreender, que o risco na garganta do brinquedo era na verdade o encontro das pálpebras de um olho grande e asqueroso que agora estava aberto e fixo em sua direção. Rafael sentia que estava sendo arrastado aos solavancos para perto do boneco, embora tivesse consciência de que seu corpo não saía do lugar. Fazia uma vaga noção da existência de fumaça em algum lugar à sua volta...

Rafael sentia que ia morrer.

Algo se mexeu em uma prateleira mais alta. O olho cessou a atração mística e girou bruscamente para cima, agitado. O rapaz o imitou e se deparou com o vulto de uma mulher caindo sobre ele. Antes que houvesse tempo para qualquer coisa, os dois corpos se chocaram e rolaram amontoados pelo chão sujo. Rafael sentiu a dor de ter o peito rasgado. Agonizando, tateou até alcançar uma adaga cravada em seu tórax, enquanto ouvia o boneco sem boca guinchar de ódio. A última coisa que viu foram mariposas cercando seu corpo até tudo escurecer completamente.

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